quarta-feira, 30 de dezembro de 2009



Cosme Damião,
Damião cadê Doum?
Doum foi passear,
no cavalo de Ogum!

(Ponto de Umbanda)

e viva a Ibejada!!!

Fotografia de Adenor Gondim

terça-feira, 29 de dezembro de 2009



Saci, moleque brasileiro

Num tempo muito antigo
Numa época diferente
A Terra partiu no meio
Separou tão de repente
A África e o Brasil
Viraram dois continentes
Devagar se afastando
Mais e mais dali pra frente

Um neguinho que brincava
Tão entretido não viu
Perdeu uma das pernas
Quando a rocha explodiu
Naquela grande rachadura
Ele quase que caiu
Viu a mãe África se afastando
E ficou aqui no Brasil

Tentando desesperado
Pro outro lado voltar
Quis virar um passarinho
E pelos ares a voar
A distância aumentou
Não conseguiu atravessar
Então foi se acostumando
E aqui resolveu ficar

Brincava com os índios
Que habitavam aqui
Fazendo peraltice
Bulindo aqui e ali
Escondendo todas as coisas
Somente pra se divertir
Os índios, indignados,
O chamaram de Saci

Até hoje sua morada
É no grande bambuzeiro
Trança a crina dos cavalos
Gira no vento o tempo inteiro
Muito esperto bom de bola
Brincalhão e muito arteiro
Acabou se transformando
No moleque brasileiro

Ditão Virgílio

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009



Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas, todos os reco-recos tocam
Atira-se, e — Ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é E-S-P-E-R-A-N-Ç-A!

Mário Quintana

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009



Alma de gato

Beira de fogo é bom
Lugar para tudo contar
Histórias de amedrontar
Se repara bem no ingá
No tonto jacarandá
Os seres vivos que há
Trinca-ferro alma de gato
Saci da mata tempera a viola
Os seres vivos que há
O homem não tem razão
D’a própria vida matar

Na trama da sapucaia
Macaco vai se enredar
O sapo vai coaxar
E a cobra se sibilar oi
Na hora do rompe-ferro
Previsto de assombração
O curumim adormece
O curupira, esse não ai

Beira de fogo é bom
Lugar para se acalentar
Lugar pra se acalentar
Os sonhos de se sonhar
Os sonhos de se sonhar...

Tavinho Moura

sexta-feira, 30 de outubro de 2009



Nova Canção do Exílio

Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos

Ferreira Gullar

terça-feira, 27 de outubro de 2009



Dos Cruces

Sevilla tuvo que ser
Con su lunita plateada
Testigo de nuestro amor
Bajo la noche callalda
Y nos quisimos tu y yo
Con un amor sin pecado
Pero el destino ha querido
Que vivamos separados

Estan clavadas dos cruces
En el monte del olvido
Por dos amores que han muerto
Sin haberse comprendido
Estan clavadas dos cruces
En el monte del olvido
Por dos amores que han muerto
Que son el tuyo y el mio

Ay, barrio de Santa Cruz
Ay, plaza de Doña Elvira
Os vuelvo yo a recordar
Y me parece mentira
Ya todo aquello pasó
Todo quedó en el olvido
Nuestra promesas de amores
En el aire se han perdido

Estan clavadas dos cruces
En el monte del olvido
Por dos amores que han muerto
Sin haberse comprendido
Estan clavadas dos cruces
En el monte del olvido
Por dos amores que han muerto
Que son el tuyo y el mio
Que son el tuyo y el mio

Carmelo Larrea

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

quinta-feira, 24 de setembro de 2009



Poema-Cigano

Nós, ciganos, temos uma só religião: a da liberdade
Em troca desta renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória
Vivemos cada dia como se fosse o último
Quando se morre, deixa-se tudo: um miserável carroção como um grande império
E nós cremos que nesse momento é muito melhor ser cigano do que rei.
Nós não pensamos na morte. Não a tememos – eis tudo.
O nosso segredo está no gozar em cada dia as pequenas coisas que a vida nos oferece
e que os outros homens não sabem apreciar; uma manhã de sol, um banho na torrente, o contemplar de alguém que se ama
É difícil compreender estas coisas, eu sei
Nasce-se cigano.
Agrada-nos caminhar sob as estrelas.
Contam-se estranhas histórias sobre ciganos
Diz-se que lemos nas estrelas e que possuímos o filtro do amor
As pessoas não acreditam nas coisas que não sabem explicar-se
Nós, pelo contrário, não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
A nossa vida é uma vida simples, primitiva: basta-nos ter por tecto o céu, um fogo para nos aquecer e as nossas canções quando estamos tristes.

Vittorio Pasqualle Spatzo (poeta cigano)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009



Trago dentro do meu coração, como num cofre que se não pode fechar de cheio, todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei, todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, ou de tombadilhos. Sonhando... E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Álvaro de Campos

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Lá em cima daquela pedreira
Tem um livro que é de Xangô
Cawo Cabecilê

Linda pedreira de pai xangô
Trazendo bençãos pro meu congá
Terra de Umbanda foi que me chamou
Fazer o bem em nome de Oxalá!

(Domínio público)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009



Sertaneja

Sertaneja se eu pudesse
Se Papai do Céu me desse
O espaço pra voar
Eu corria a natureza
Acabava com a tristeza
Só pra não te ver chorar

Na ilusão deste poema
Eu roubava um diadema
Lá no céu pra te ofertar
E onde a fonte rumoreja
Eu erguia tua igreja
Dentro dela o teu altar

Sertaneja, porque choras quando eu canto ?
Sertaneja, se este canto é todo teu
Sertaneja, pra secar os teus olhinhos
Vá ouvir os passarinhos
Que cantam mais do que eu

A tristeza do teu pranto
É mais triste quando eu canto
A canção que te escrevi
E os teus olhos neste instante
Brilham mais que a mais brilhante
Das estrelas que já vi

Sertaneja vou embora
A saudade vem agora
A alegria vem depois
Vou subir por essas serras
Construir lá noutras terras
Um ranchinho pra nós dois

René Bittencourt

terça-feira, 4 de agosto de 2009



Inquietação

Quem se deixou escravizar
E, no abismo, despencar
Por um amor qualquer
Quem, no aceso da paixão
Entregou o coração
À uma mulher
Não soube o mundo compreender
Nem a arte de viver
Nem chegou, mesmo de leve, a perceber
Que o mundo é sonho, fantasia
Desengano, alegria
Sofrimento, ironia
Nas asas brancas da ilusão
Nossa imaginação
Pelo espaço, vai, vai, vai
Sem desconfiar
Que mais tarde cai
Para nunca mais voar

Ari Barroso

segunda-feira, 13 de julho de 2009



Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto

(Tela The Promenade de Marc Chagall, 1917-18)

quinta-feira, 25 de junho de 2009



Um Ser de Luz

Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus lhe abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar
Sua voz então
Ao se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava
Espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
A gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de Vê-la, sabiá

Sabiá
Que falta faz tua alegria
Sem você, meu canto agora é só
Melancolia
Canta, meu sabiá, voa, meu sabiá
Adeus, meu sabiá, até um dia

João Nogueira e Paulo César Pinheiro

terça-feira, 16 de junho de 2009



Desilusão

Como a folha no vento pelo espaço
Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
A bater e a pulsar com embaraço.

Se é de dia, vou indo passo a passo
Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Para o mal incurável não há jeito,
É sem cura que eu vejo o meu fracasso.

Do parnaso não vejo o belo monte,
Minha estrela brilhante no horizonte
Me negou o seu raio de esperança,

Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.

Patativa do Assaré

terça-feira, 9 de junho de 2009



Responsório de Santo Antônio

Se milagres desejais,
Recorrei a Santo Antônio;
Vereis fugir o demônio
E as tentações infernais.
Recupera-se o perdido,
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.
Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos. Repete-se:
Recupera-se o perdido...
Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte E torna-se o enfermo são.
Repete-se: - Recupera-se o perdido...
Glória ao Pai, e ao Filho e ao Espírito Santo
Repete-se: - Recupera-se o perdido...

Rogai por nós, bem-aventurado Antônio.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

(pelo aniversário de dois anos do Blog Una Crisalida, criado no dia de Santo Antonio)

segunda-feira, 1 de junho de 2009



Meia-lua

Por esses seios
eu vejo a luz,
todos os enleios
da lua em cruz.

Pois não sei bem
para qual olhar
se ambos me têm
a palpitar!

Na taça e meia
de uma champanhe
encontro a veia!

Para que me banhe
basta alcançar
o verbo amar!

Renata Iacovino
in Ouvindo o silêncio

sexta-feira, 29 de maio de 2009



Regresso

Perguntaste a mim,
que meus pés molhava
neste mar sem fim,
para que eu olhava...

Eu, ah, olhava ao longe
sem pensar em nada,
imitando um monge
de vista ilibada

(Que descanso imenso
mora onde eu não penso)
Só fui retornar

porque me chamaste,
e ao que perguntaste,
respondi: "pro mar"

Valquíria Gesqui Malagoli
in Testamento

segunda-feira, 18 de maio de 2009



Arrumação

Josefina sai cá fora e vem vê
Olha os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina riduzi toda criação
Das bandas de lá do ri gavião
Chiquera pra cá já ronca o truvão
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo planta feijão no pó
Mãe purdença inda num cuieu o ai
O ai roxo dessa lavora tardã
Diligença pega panicum balai
Vai cum tua irmã, vai num pulo só
Vai cuiê o ai, o ai da tua avó

Lua nova sussarana vai passá
Sêda branca, na passada ela levô
Ponta d´unha, lua fina risca o céu
A onça prisunha, a cara de réu
O pai do chiquêro a gata comeu
Foi um trovejo c´ua zagaia só
Foi tanto sangue que dá dó

Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento as pirsiguição
Já só caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão

Elomar

terça-feira, 28 de abril de 2009



É noite outra vez

É noite outra vez.
Há pouco era dia,
E isso è revelia
Do que o homem fez,
Tudo se repete
E ao fim nos remete.

Quem sabe, afinal,
Dentre todos nós
O que é o bem ou o mal;
Ou se o fim é atroz?
Dando à vida adeus
Vê-se luz... ou breus?!

Valquíria G. Malagoli

in Testamento

sexta-feira, 24 de abril de 2009



¿Quién muere?

Muere lentamente quien se transforma en esclavo del hábito,
repitiendo todos los días los mismos trayectos,
quien no cambia de marca,
no arriesga vestir un color nuevo
y no le habla a quien no conoce.
Muere lentamente quien hace de la televisión su gurú.
Muere lentamente quien evita una pasión,
quien prefiere el negro sobre blanco
y los puntos sobre las "íes" a un remolino de emociones,
justamente las que rescatan el brillo de los ojos,sonrisas de los
bostezos, corazones a los tropiezos y sentimientos.
Muere lentamente quien no voltea la mesa cuando está infeliz en el
trabajo,
quien no arriesga lo cierto por lo incierto para ir detrás de un sueño,
quien no se permite por lo menos una vez en la vida,
huir de los consejos sensatos.
Muere lentamente quien no viaja, quien no lee, quien no oye música,
quien no encuentra gracia en si mismo.
Muere lentamente quien destruye su amor propio, quien no se deja
ayudar.
Muere lentamente, quien pasa los días
quejándose de su mala suerte o de la lluvia incesante.
Muere lentamente, quien abandona un proyecto antes de iniciarlo,
no preguntando de un asunto que desconoce
o no respondiendo cuando le indagan sobre algo que sabe.
Evitemos la muerte en suaves cuotas, recordando siempre que estar vivo
exige un esfuerzo mucho mayor que el simple hecho de respirar.
Solamente la ardiente paciencia hará
que conquistemos una espléndida felicidad.

Pablo Neruda

terça-feira, 14 de abril de 2009



Um dia voarão os filhos dos homens, disse padre Bartolomeu (...) quantas vontades recolhestes hoje Blimunda? Não menos de trinta, respondeu. É pouco, e as mais são de homem ou de mulher? As mais são de homem, parece que as vontades de mulher resistem a separar-se do corpo... por que será? (...) E tu, Blimunda, lembra-te de que são precisas pelo menos duas mil vontades, duas mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não merecerem as almas, ou os corpos por as não merecerem, com essas trinta que aí tens não se levantaria o cavalo Pégaso apesar de ter asas. Pensem como é grande a terra que pisamos, ela puxa os corpos para baixo, e sendo o sol tão maior como é, mesmo assim não leva a terra para si, ora, para que nós voemos na atmosfera serão precisas as forças concertadas do sol, do âmbar, dos imanes e das vontades, mas as vontades são, de tudo, o mais importante, sem elas não nos deixaria subir a terra (...)

José Saramago

in Memorial do Convento

sexta-feira, 3 de abril de 2009



"Que aconteceu em Nahr El Bared? Não, não foi um tsunami. Nem mesmo um tremor de terra de grau 8. Foi simplesmente uma guerra de grau 10.
Nahr El Bared era o principal campo de refugiados palestinianos do Norte do Líbano. Era. Porque os combates que, entre Junho e Outubro, opuseram o exército libanês ao grupo salafita Fatah Al Islam, tudo varreram.
Antes da entrada no campo, e situado à direita da estrada, nasceu entretanto um novo bairro. É o primeiro do retorno.
Cinco mil e quinhentas famílias foram expulsas das suas casas pelos combates. Abandonaram tudo para sobreviverem. Foram para outros campos de refugiados, já de si saturados. A maioria ainda hoje aí vive, dormindo em armazéns e salas de escolas sem as menores condições.
Este bairro é apenas um recomeço. Para as primeiras 150 famílias que decidiram regressar. As casas são da responsabilidade da Agência das Nações Unidas para os refugiados (UNHRWA). Cada família até seis pessoas tem direito a 8 metros quadrados; e a um telhado de zinco que pinga humidade para o interior da habitação como se fosse chuva, porque alguém decidiu que não teriam inclinação."

Miguel Portas in http://www.miguelportas.net/blog/?p=337

sexta-feira, 27 de março de 2009



"escrevo para me entender. Desenrolar o carretel interno dentro da cabeça e do peito. Desfazer alguns nós. Análise e síntese, o movimento das marés, vai e vem, luz e sombra..."

João Silêncio

sexta-feira, 20 de março de 2009



A alma é como a lavra

A alma é como a lavra.
Quando as nossas mãos voltam a desfiar
O milho amarelo de ouro?
Que outras mãos que as nossas semeiam
O medo e o silêncio da morte?
Porquê este frio? Porquê tão longa a noite?
Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?

Maria Alexandre Dáskalos

(Óleo sobre tela de Guilherme de Faria, A invocação mágica de Alma Welt)


Tres puertas

Tiene la vida tres puertas
para las almas experimentadas;
tres puertas, como tres esquinas,
y las tres bien ubicadas.

Por la primera entran al tiempo
y, a su tiempo, por la segunda salen.
Por la tercera, corazón,
reciben todo lo que ya saben…

¿Qué podría yo contarte,
que tú ya no supieras?
Tres esquinas tiene la vida
y en las tres la vida te espera.

No en vano eres alma versada,
experimentada y vieja…

Gregorio Sarmiento Acosta

in http://www.centropoetico.com/

terça-feira, 17 de março de 2009



Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez se levantou Baltazar para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, Sete-Sóis pôde dizer, Por que foi que perguntaste meu nome, e Blimunda respondeu, Porque foi minha mãe o quis saber e queria que eu soubesse, Como sabes, se ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não farás o que já fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar onde durmo, Comigo.
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, Dezenove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador umedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltazar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só abriu, cinzentos àquela hora da manhã, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.

José Saramago

in Memorial do Convento

terça-feira, 10 de março de 2009

Mãos
Mesmo que não percebamos, em momentos em que o tudo parece ser apenas nada, sempre há uma que se estende em nossa direção. Obram, amam, trazem um tanto de vida ao mundo. E também apontam, e matam, e cutucam feridas infeccionadas. Mas isto talvez seja desimportante. Ou não.

Caio Riter

in http://caioriter.blogspot.com/
(imagem escolhida pelo autor)

segunda-feira, 9 de março de 2009



Em uma lágrima
Todos os sentimentos
Em um sorriso
A paz de todos os corações
Em uma mão
O conforto e a união
Em um só coração
O mundo

Evelyn R. Souza

in "Entre Aspas"
(imagem escolhida pela autora)

sexta-feira, 6 de março de 2009



Gitanjali

Deixa a cantilena, o cântico e a recitação de contas de rosário!
A quem veneras neste recanto solitário e escuro dum templo de portas fechadas?
Abre teus olhos e vê que teu Deus não está diante de ti!
Ele está onde o agricultor está lavrando o chão duro e onde o pedreiro está rachando pedras.
Ele está com eles no sol e na chuva, e sua roupa está coberta de poeira.
Remove teu manto sagrado e como Ele desça para o chão empoeirado!
Libertação? Onde se encontra esta libertação?
Nosso mestre assumiu pessoalmente com alegria os vínculos da criação;
Ele está vinculado a nós para sempre.
Sai de tuas meditações e deixa de lado tuas flores e o incenso!
Que mal há se tuas roupas ficam gastas e manchadas?
Encontra-o e fica com Ele na faina e no suor de tua face.

Rabindranath Tagore

quinta-feira, 5 de março de 2009



Respire fundo. Esta é uma pálida amostra da vista do castelo em direcção a ocidente. É aqui que lhe conto esta história de encantar:

Pergunta-me pelo meu nome de família? É uma história bem curiosa. Como vê, o castelo é demasiadamente grande para os cruzados que o defendiam. Saladino, o chefe muçulmano, acabou por o tomar. E entre os sitiados quem não morreu foi feito prisioneiro. Sucede que nessa época – falamos do século XII – era hábito o resgate de prisioneiros. Os cavaleiros mais ricos depressa eram libertados. Mas houve dois que não tiveram como. Pediram então a Saladino autorização para irem até às suas terras, onde encontrariam as moedas que comprariam a liberdade. Assim se fez, mas a viagem foi um insucesso. Em França, os seus domínios tinham mudado de mãos, e os cavaleiros não encontraram maneira de saldar a dívida. Regressaram e apresentaram-se de novo a Saladino. Não se acredita, não é? Mas assim foi e o gesto impressionou o comandante muçulmano. Tanto ou tão pouco, que decidiu libertá-los contra a garantia de que o nome “Saladino” passaria a estar inscrito nas respectivas descendências para todo o sempre.Pergunta-me porque é que, sendo francesa, uso o apelido Saladin? Aí tem a resposta. A minha família cumpriu até hoje o contrato dos seus antepassados.

A história é verídica e está documentada. Foi-me contada, não pela própria, mas por quem a ouviu da sua boca, exactamente no lugar onde me encontro e onde estes extraordinários acontecimentos ocorreram há 800 anos.


Miguel Portas

in http://www.miguelportas.net/blog/?cat=18
(A imagem, também de sua autoria, é a vista do Castelo Jerusalém)


Barco

Choro contigo barco
Pela praia que deixas
Pelo sol que se deita
Longe das pedras do cais
Choro contigo barco
Amanhã talvez não chore mais
Choro meu choro parco
Neném que a mãe não mais aleita
Choro a caça que espreita
Bem perto a mira do algoz
Choro catarinetas
manhã alguém chora por nós
Choro saber que
Os açudes não são o mar
Que não se pode guardar
Em alguidares de areia
Choro o destino das sereias
E o desatino do astrolábio
Choro saber que o homem sábio
Pode morrer se não souber nadar
Choro contigo e parto
Nas ondas vagas incertas
As nossas velas abertas
São ferramentas do caos
Chore comigo barco
A sina de todos os naus

Chico César


"Desde que estava deitada no sofá, enclausurada, protegida, a presença daquilo que sentia tão evidente criou uma existência física; vestida com os ruídos da rua, banhada de sol, o hálito quente, segredando, agitando os estores. Supondo que Peter lhe dizia: Sim, sim, mas as tuas festas, que significavam as tuas festas?, tudo quanto podia responder era (e não esperava que ninguém compreendesse): São uma oferenda; o que é terrivelmente vago. Mas quem era Peter para estabelecer que a vida é uma jornada fácil? Peter, sempre apaixonado, sempre apaixonado pela mulher que não lhe convém? Que espécie de amor é o teu?, podia ela perguntar-lhe. E sabia muito bem qual seria a resposta: que é a coisa mais importante do mundo e que talvez mulher nenhuma o compreenda. Muito bem. Mas podia algum homem compreender também o que ela queria dizer? A respeito da vida? Ela não conseguia imaginar Peter ou Richard metendo ombros ao trabalho de dar uma festa sem qualquer razão.Mas para ir mais fundo, mais além do que diziam as pessoas (e estas opiniões, como são superficiais e fragmentárias!), agora até ao âmago do seu próprio espírito, que significava para ela isso a que se chama a vida?"

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf.

(Tela: Virginia Woolf, Vanessa Bell)


Deriva

Sigo na nau dos sonhos destruídos,
na qual tudo é cansaço e inverdade;
sustem-me o mar da vil comodidade,
nina-me o som de um coro de esquecidos...

Há uns tantos poetas sem vontade
cujas musas fugiram aos seus sentidos,
uns profetas de há muito enceguecidos,
Da Vincis castrados em tenra idade

que comigo atravessam, aquietados,
este mar torpe de medíocre espuma
junto a centenas de outros derrotados...

Mortos os sonhos na insensata bruma,
vagamos, tristes e acomodados,
nesta nau que não irá a parte alguma!

Robertson Frizero Barros
in Locutório


Rainha das águas

Auê Iemanjá
Auê Iemanjá
Rainha das águas, sereia do mar

Como é lindo o canto de Iemanjá
Faz até o pescador chorar
Quando escuta a mãe d'água cantar
vai com ela pro fundo do mar

Auê, Iemanjá

(Ponto)

***

terça-feira, 3 de março de 2009

Como posso guardar? não consigo:
tuas lágrimas, ah, que angustiante.
Sei apenas somar - que perigo!

com as minhas, tal qual um diamante,
que de tão trsite eu quero e persigo...
por qualquer hora, por todos instante!

Eu me rendo, não calo, mas digo.
É o que faz eu poder ir adiante.
Meu lugar, sei, será um jazigo.

Meu amor tem o raro semblante
do que apenas divide comigo.
Ah! Que amor tão profundo e gigante!

Renata Iacovino e Valquíria Gesqui Malagoli