sexta-feira, 27 de março de 2009



"escrevo para me entender. Desenrolar o carretel interno dentro da cabeça e do peito. Desfazer alguns nós. Análise e síntese, o movimento das marés, vai e vem, luz e sombra..."

João Silêncio

sexta-feira, 20 de março de 2009



A alma é como a lavra

A alma é como a lavra.
Quando as nossas mãos voltam a desfiar
O milho amarelo de ouro?
Que outras mãos que as nossas semeiam
O medo e o silêncio da morte?
Porquê este frio? Porquê tão longa a noite?
Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?

Maria Alexandre Dáskalos

(Óleo sobre tela de Guilherme de Faria, A invocação mágica de Alma Welt)


Tres puertas

Tiene la vida tres puertas
para las almas experimentadas;
tres puertas, como tres esquinas,
y las tres bien ubicadas.

Por la primera entran al tiempo
y, a su tiempo, por la segunda salen.
Por la tercera, corazón,
reciben todo lo que ya saben…

¿Qué podría yo contarte,
que tú ya no supieras?
Tres esquinas tiene la vida
y en las tres la vida te espera.

No en vano eres alma versada,
experimentada y vieja…

Gregorio Sarmiento Acosta

in http://www.centropoetico.com/

terça-feira, 17 de março de 2009



Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez se levantou Baltazar para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, Sete-Sóis pôde dizer, Por que foi que perguntaste meu nome, e Blimunda respondeu, Porque foi minha mãe o quis saber e queria que eu soubesse, Como sabes, se ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não farás o que já fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar onde durmo, Comigo.
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, Dezenove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador umedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltazar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só abriu, cinzentos àquela hora da manhã, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.

José Saramago

in Memorial do Convento

terça-feira, 10 de março de 2009

Mãos
Mesmo que não percebamos, em momentos em que o tudo parece ser apenas nada, sempre há uma que se estende em nossa direção. Obram, amam, trazem um tanto de vida ao mundo. E também apontam, e matam, e cutucam feridas infeccionadas. Mas isto talvez seja desimportante. Ou não.

Caio Riter

in http://caioriter.blogspot.com/
(imagem escolhida pelo autor)

segunda-feira, 9 de março de 2009



Em uma lágrima
Todos os sentimentos
Em um sorriso
A paz de todos os corações
Em uma mão
O conforto e a união
Em um só coração
O mundo

Evelyn R. Souza

in "Entre Aspas"
(imagem escolhida pela autora)

sexta-feira, 6 de março de 2009



Gitanjali

Deixa a cantilena, o cântico e a recitação de contas de rosário!
A quem veneras neste recanto solitário e escuro dum templo de portas fechadas?
Abre teus olhos e vê que teu Deus não está diante de ti!
Ele está onde o agricultor está lavrando o chão duro e onde o pedreiro está rachando pedras.
Ele está com eles no sol e na chuva, e sua roupa está coberta de poeira.
Remove teu manto sagrado e como Ele desça para o chão empoeirado!
Libertação? Onde se encontra esta libertação?
Nosso mestre assumiu pessoalmente com alegria os vínculos da criação;
Ele está vinculado a nós para sempre.
Sai de tuas meditações e deixa de lado tuas flores e o incenso!
Que mal há se tuas roupas ficam gastas e manchadas?
Encontra-o e fica com Ele na faina e no suor de tua face.

Rabindranath Tagore

quinta-feira, 5 de março de 2009



Respire fundo. Esta é uma pálida amostra da vista do castelo em direcção a ocidente. É aqui que lhe conto esta história de encantar:

Pergunta-me pelo meu nome de família? É uma história bem curiosa. Como vê, o castelo é demasiadamente grande para os cruzados que o defendiam. Saladino, o chefe muçulmano, acabou por o tomar. E entre os sitiados quem não morreu foi feito prisioneiro. Sucede que nessa época – falamos do século XII – era hábito o resgate de prisioneiros. Os cavaleiros mais ricos depressa eram libertados. Mas houve dois que não tiveram como. Pediram então a Saladino autorização para irem até às suas terras, onde encontrariam as moedas que comprariam a liberdade. Assim se fez, mas a viagem foi um insucesso. Em França, os seus domínios tinham mudado de mãos, e os cavaleiros não encontraram maneira de saldar a dívida. Regressaram e apresentaram-se de novo a Saladino. Não se acredita, não é? Mas assim foi e o gesto impressionou o comandante muçulmano. Tanto ou tão pouco, que decidiu libertá-los contra a garantia de que o nome “Saladino” passaria a estar inscrito nas respectivas descendências para todo o sempre.Pergunta-me porque é que, sendo francesa, uso o apelido Saladin? Aí tem a resposta. A minha família cumpriu até hoje o contrato dos seus antepassados.

A história é verídica e está documentada. Foi-me contada, não pela própria, mas por quem a ouviu da sua boca, exactamente no lugar onde me encontro e onde estes extraordinários acontecimentos ocorreram há 800 anos.


Miguel Portas

in http://www.miguelportas.net/blog/?cat=18
(A imagem, também de sua autoria, é a vista do Castelo Jerusalém)


Barco

Choro contigo barco
Pela praia que deixas
Pelo sol que se deita
Longe das pedras do cais
Choro contigo barco
Amanhã talvez não chore mais
Choro meu choro parco
Neném que a mãe não mais aleita
Choro a caça que espreita
Bem perto a mira do algoz
Choro catarinetas
manhã alguém chora por nós
Choro saber que
Os açudes não são o mar
Que não se pode guardar
Em alguidares de areia
Choro o destino das sereias
E o desatino do astrolábio
Choro saber que o homem sábio
Pode morrer se não souber nadar
Choro contigo e parto
Nas ondas vagas incertas
As nossas velas abertas
São ferramentas do caos
Chore comigo barco
A sina de todos os naus

Chico César


"Desde que estava deitada no sofá, enclausurada, protegida, a presença daquilo que sentia tão evidente criou uma existência física; vestida com os ruídos da rua, banhada de sol, o hálito quente, segredando, agitando os estores. Supondo que Peter lhe dizia: Sim, sim, mas as tuas festas, que significavam as tuas festas?, tudo quanto podia responder era (e não esperava que ninguém compreendesse): São uma oferenda; o que é terrivelmente vago. Mas quem era Peter para estabelecer que a vida é uma jornada fácil? Peter, sempre apaixonado, sempre apaixonado pela mulher que não lhe convém? Que espécie de amor é o teu?, podia ela perguntar-lhe. E sabia muito bem qual seria a resposta: que é a coisa mais importante do mundo e que talvez mulher nenhuma o compreenda. Muito bem. Mas podia algum homem compreender também o que ela queria dizer? A respeito da vida? Ela não conseguia imaginar Peter ou Richard metendo ombros ao trabalho de dar uma festa sem qualquer razão.Mas para ir mais fundo, mais além do que diziam as pessoas (e estas opiniões, como são superficiais e fragmentárias!), agora até ao âmago do seu próprio espírito, que significava para ela isso a que se chama a vida?"

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf.

(Tela: Virginia Woolf, Vanessa Bell)


Deriva

Sigo na nau dos sonhos destruídos,
na qual tudo é cansaço e inverdade;
sustem-me o mar da vil comodidade,
nina-me o som de um coro de esquecidos...

Há uns tantos poetas sem vontade
cujas musas fugiram aos seus sentidos,
uns profetas de há muito enceguecidos,
Da Vincis castrados em tenra idade

que comigo atravessam, aquietados,
este mar torpe de medíocre espuma
junto a centenas de outros derrotados...

Mortos os sonhos na insensata bruma,
vagamos, tristes e acomodados,
nesta nau que não irá a parte alguma!

Robertson Frizero Barros
in Locutório


Rainha das águas

Auê Iemanjá
Auê Iemanjá
Rainha das águas, sereia do mar

Como é lindo o canto de Iemanjá
Faz até o pescador chorar
Quando escuta a mãe d'água cantar
vai com ela pro fundo do mar

Auê, Iemanjá

(Ponto)

***

terça-feira, 3 de março de 2009

Como posso guardar? não consigo:
tuas lágrimas, ah, que angustiante.
Sei apenas somar - que perigo!

com as minhas, tal qual um diamante,
que de tão trsite eu quero e persigo...
por qualquer hora, por todos instante!

Eu me rendo, não calo, mas digo.
É o que faz eu poder ir adiante.
Meu lugar, sei, será um jazigo.

Meu amor tem o raro semblante
do que apenas divide comigo.
Ah! Que amor tão profundo e gigante!

Renata Iacovino e Valquíria Gesqui Malagoli